Longe do mundo ... perto de ti


Ela pagou por isso: para pegar o carro e andar horas numa estrada asfaltada. Depois de chão batido. Comer poeira, sentir calor. Querer dormir. Querer levantar. Até que o caminho terminou. E então, tinha de seguir a pé.
Ela caminhou no sol forte. Atravessou rio de barco e chegou no meio de um vale. No centro, um casarão. “Era uma casa muito engraçada ...”, diz a música. De pedra e madeira. Sem portas e trancas. Sem vidros, nem cortinas. Sem tomadas, telefones, sem conexão com o mundo exterior (moderno?). Apenas uma casa, o simples e o essencial. Mais nada. “Ufa! Enfim o repouso”, ela pensa. Na casa de madeira e pedras, uma grande sala, um salão de lanches. “Mas e os quartos, o banho?”, ela pensa. Mais afastadas estavam as casas-dormitórios.
Cansada da viagem, ela correu para o quarto. Agora ela entende porque tinha de levar lanternas. Apenas uma vela ilumina o quarto. Corre para o banho. Queria tomar um banho quentinho para relaxar. E eis a surpresa... “Ahhhhhhhhhhhh”, ela grita, embaixo da água gelada. “Amanhã, mais cedo, consigo pegar água quente”, ela pensa, enquanto toma um banho de gato, embaixo da água fria: vai lavando cada pedacinho de uma vez, sem molhar o corpo todo. Mas no amanhã não tem água quente, nem depois, nem depois...
Para andar ali tem que ter repelente. Para nadar ali tem que ter lanterna. Para viver ali tem que comer comida natureba. Tem que agüentar o frio da janela sem vidro que bate de madrugada em seu rosto. E ela pagou por isso: para não ter direito à luz, nem telefone, nem banho quente, nem televisão. Pra ser picada por inseto...
“Que indiada!”, diz uma amiga na cidade metrópole, depois que ela voltou à “civilização”. E, ao ouvir a amiga, lembrou de outros “programas de índio”, que fazia com uma outra turma, em outra cidade, no Planalto Central, quando contavam os números de “machadinhas que a indiada tinha”. Como se programa de índio fosse ruim...
Ela pagou por isso: dias longe do conforto, dias “longe do mundo, no meio do mato”. Ela pagou para ser acordada com a luz do sol batendo em seu rosto. Ela pagou para acordar cedo e fazer aula de yoga numa sala sem paredes, no friozinho da manhã no Cerrado. Para meditar. Para dançar de pé no chão, para abraçar o desconhecido...
E o pior é que ela gostou. Temos tantas coisas imprescindíveis na vida que, no fundo, não são “tudo isso”. Não precisamos de todas as necessidades que criamos.
O que realmente importante? Um lugar para dormir e comer. E o convívio. Apenas e mais nada. Convívio consigo, com a natureza, com o outro. Amar sem pedir em troca. Simplesmente se entregar ao desconhecido e reconhecer-se nele.
Ali, celular não pega. Mas pra que, se tem toda a natureza para contemplar?
Ela pagou para deitar-se numa cama na rua, com pessoas desconhecidas, e admirar a lua e as estrelas. Para caminhar no meio do mato e se encantar com a beleza de uma borboleta azul, com a água cristalina de um rio, com a vegetação do Cerrado. Para sentar-se à beira de uma fogueira e ficar olhando a chama do fogo, ouvindo histórias engraçadas. Para dançar até a madrugada. Para deitar e dar a mão a alguém que conheceu há pouco. Para tropeçar na escuridão.
Enfim, ela pagou para conviver ... (Infelizmente vivemos numa sociedade que depende da moeda). Para (re) aprender a se abrir para o mundo.
“Fui para longe do mundo”, ela disse antes de sair de casa. “Fugi do mundo”, foi o que ouviu de alguns colegas de aventura do meio do mato. Mas o que é o mundo afinal?
Ali, no meio de um vale, “longe do mundo”, no Cerrado, ela se sentiu em casa, em família. E entendeu porque às vezes precisa se recolher como um feto no útero ... Estava em um lugar acolhedor, amando e sendo amada e mais nada. E a frase deixada antes da viagem fez ainda mais sentido: “Vou ser feliz e já volto”.
Então, ela voltou para selva de pedra, como um bebê,que precisa cortar o cordão umbilical. Como um recém nascido, os olhos foram se acostumando com o mundo ao redor. “Que mundo?”, ficou a pergunta na cabeça dela. Mas com a sensação do aconchego do útero quentinho, que ela pretende levar consigo.

(Da série: Ela pensa que é literatura)

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