Cifragem (ou uma despedida candanguinha)




Enigmática. Esta talvez seja a tua melhor definição. Lembro ainda de quando te vi a primeira vez. Anoitecia, o céu estava escuro mas, mal e mal, ainda se enxergava rastros vermelhos a rasgar (e iluminar) o horizonte. De cima, tudo era grandioso. De baixo, também.
Fiquei emudecido contigo. Largos horizontes (em todos os sentidos). E muita gente jovem. “Festa estranha, com gente esquisita”, dizia o Renato Russo. E eu ainda com o “vento no litoral” zunindo em meus ouvidos. Engraçado, as músicas que eu sempre mais gostei eram pra ti.
Não esqueço também de que, antes de te conhecer, um dia sonhei contigo. No auge do meu “petismo” disse que tu eras a minha solução. Também da recomendação que ouvi, que tu eras uma mulher difícil. Ou ame ou odeie. E de que, quem bebesse da tua água por muito tempo se contaminava. E eu tomei um porre!
Tu me recebeste de braços abertos. Horizontes largos. Contigo, eu me descobri. E convivi com gente que há tempos não imaginava e, outros, que já estava acostumado. Lembras do nosso clube recreativo? Lembras das nossas jogatinas?
Hoje, um filmezinho passa na minha cabeça. No avião, uma frase me martelando. Antes de partir, e de te conhecer, uma pessoa me disse que no planalto me encontraria. Mas tinha que ser contigo? Nunca pensei. Tu serias uma passagem e não um marco, imaginava. Dois anos, no máximo. Mas eu me embebedei de tua água.
Horizontes largos. Contigo, todos os meus sonhos e projetos viraram realidade. Tu não lembras, mas lá no Rio Grande eu sonhava com minhas crianças. E tu me deste. Tu não sabes, mas lá no Rio Grande eu pulava de galho em galho, sem saber onde me encontrar, sem saber como falar com Deus. E tu me mostraste o caminho.
Contigo fiquei mais gaúcho. Mas hoje, um pouco mais candanguinho. Oh, palavra feia! Goiano do quadradinho. Lembro que quando brincava contigo de teu palavreado, te irritavas. Código de barras. Modernidade. Autorama gigante. Tesourinha. Me perdia em teus caminhos. Horizontes largos. E o você. Por que tu insistes? Eu sou gaúcho, candanguinha.
Jovens. Contigo me senti mais moço. Poucas noitadas, é verdade, pois teus programas são ligth. Mas tinha dias em que olhava ao redor e eu era um dos mais velhos. Credo, minhas rugas começaram a aparecer! E os primeiros cabelos brancos ... Longos, quando te conheci. Curtos, quando te abandonei. E ruivos e pretos, nestes quatro anos.
Passei cada aperto contigo. E muitos momentos felizes. Lembras quando meu cheque especial estourou? E quando o imundinho chegou de Porto Alegre? Contigo torci pelo Felipão (não podia abandonar um gremista). E me assustei: menino incendiando índio, seqüestro relâmpago. Também fiquei impressionada com a tua falta de cultura (pelo menos, para os meus padrões porto-alegrenses).
Mas conheci coisas novas. Largos horizontes. Novos sons. Melodias interessantes. Pink Floyd, Capital Inicial, Luís Melodia, me deixei apaixonar. E alguns do Sul que descobri contigo, candanguinha. E lógico que não deixei de curtir contigo o Kid Abelha.
Lindinha, foi uma das palavras que mais ouvi. E véio (em todos os sentidos). Piquenique. Churrasco no parque. Cerrado. Tantas coisas! Fiz muitos amigos contigo também. Gente inesquecível. Presidentes, ministros, gente do poder e pobres, convivi com todos os tipos. Todos os sabores se encontram contigo.
Lembro que a primeira vez que te vi te achei feia, seca, apesar dos horizontes largos. Mas depois tinha dias que pensava que ia virar sapo e outros, que não via a hora de beber da tua água.
E dancei, dançamos muito. Tudo o que podíamos e queríamos. Até forro! E também descobri outras modalidades apaixonantes. E reencontrei algumas. Me reencontrei. Mas também me machuquei. Lembras?
E foi por tudo isso, e com tudo isso que me ensinaste, que descobri o que eu queria. Mas, infelizmente, tu não tens para me oferecer. Vou ter que te abandonar. Não é só a ti que deixo, mas também a todos que me apresentaste. E aqueles que apresentei a outros. Formamos famílias a partir de laços diferentes.
Tu me deste tanto, o caminho e a luz, mas por que não segues comigo? Por que soltas a minha mão e me deixar partir sozinho? Injusto não ter como te agradecer.
Amei muitas mulheres: aquela que me deu a luz e aquela que nunca me quis (lembras que tentei te abandonar por ela?). Mas só uma será inesquecível. Só uma tem horizontes largos. Só uma me deixou ter largos horizontes. Bebi da tua água e me contaminei, candanguinha. Só tu me mostraste o que é felicidade. Tu, enigmática, mulher difícil, inesquecível, Brasília.

Brasília
Maio/2004


(Ela pensa que é literatura)
(As cidades invisíveis)




... 25 ou menos, muito menos ...

Comentários

Anônimo disse…
Neila, cada vez mais admiro tua capacidade de escrever textos deste tipo: brilhantes e enigmáticos...A gente fique preso ao texto o tempo todo. Até o seu final, quando se descobre a quem realmente se destina...Como um suspense...risos...Claro que para quem acompanha tua trajetória até então, na primeira frase ou até mesmo no título, já percebe sobre o que se trata. Mas ainda assim é empolgante e interessante. Parabéns!Bjs

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