Nunca não é nenhum dia* (Ou a carta do abandono)

A Milly Lacombe (sempre ela, agora é minha "guru"), começou o seu texto na TPM deste mês assim "É uma noite sem luar, sabia?" ... E terminou deste jeito: "De repente entendo que a vida sem amor vai ser, para sempre, uma noite sem luar. E eu não consigo entender o céu que não tem Lua. Por mais que nele brilhem estrelas e planetas." Bem, imediatamente, mais uma vez, lembrei de um texto que escrevi, que fala da lua e que eu transcrevo abaixo. Nunca não é nenhum dia (editado) foi escrito para o "Obsesion" (estou quase me curando...)


A lua estava cheia, mas nós não vimos. Assim como deixamos passar muita coisa. Talvez por causa do céu nublado (como o meu olhar). De repente, o vento frio trouxe um enorme vazio. O olhar sumiu no horizonte. A água ficou turva e o rio transbordou. Com ele, uma dor imensa, como que arrebentar o peito. E os soluços contidos não mais se contiveram.
Sempre soube que esse dia ia chegar. Mais cedo ou mais tarde. A vida é feita de despedidas e nós sempre estivemos assim. Aquele que abandona o outro, certamente um dia também será deixado. Partir tem sido constância em nossas vidas. É verdade que muito mais na tua do que na minha. A cada mala pronta, um lugar que se abandona. Alguém que se deixa para trás. A vida é uma eterna despedida ...
O olhar distante buscava a proximidade. E, como num flash, uma década de ausência se fez presente. A primeira despedida, quando só tu estavas na minha vida. O (re)encontro. E todas as outras despedidas.
Estar presente, ausente. Assim sentia a cada mala pronta. Estar ausente, presente. Assim ficava depois de muitas malas desfeitas.
O olhar, no ponto de fuga, sorria. Lembrava das duas crianças brincando e de quando virávamos adultos. O vulcão à espera da erupção, borbulhando por dentro, observava cada gesto com cuidado. Cada toque era saboreado. Seria a última vez. Por isso, postergar o gozo. Por isso, prolongar a noite. Por isso, esperar mais um pouco.
A vida, também, é feita de esperas. Mas, às vezes, cansa. Um avião que não chega, uma ligação que não se faz, um toque que não vem. A saudade contida. E, de repente, ela transborda.
Saudade de um tempo que não volta mais. Quando escrevi isso, não esperava que fosse pra sempre. Sempre não é todo dia. Como um banho-maria, ia levando. Sorvendo meu chimarrão lentamente. Sentindo cada gostinho, cada carinho, cada beijo, cada olhar.
Mas, de repente (não mais que de repente), vinha um enorme vazio. Sozinha, acompanhada. A pior solidão é aquela que a gente jura que não merecia. Se eu estava presente, por que não receber isso em troca?
Foi uma agonia prolongada, talvez “premeditada”. A dor latejava desde o dia em que bateste a porta sem dizer adeus. Desde quando tua ausência ficou insuportável, que a presença física já não importava. De quando me senti sem chão. Por meses esta ferida sangrou e, quando estava quase boa, vieste cicatrizá-la. Então, mais uma vez me abandonaste, sem despedida (como quando só tu estavas na minha vida). E ela reabriu, sangrou, doeu, ficou quase inabitável. Tudo por um olhar, por um “estar vivo”.
Novamente nos encontramos. E veio o golpe de misericórdia. E a imensa saudade, que aumentava a cada dia, a cada viagem prolongada. Que nunca era desfeita (satisfeita), porque era do presente e do passado. Porque carregava meses, talvez anos. Porque trazia na bagagem tudo de bom que tinha vivido, mas também o que não tinha acontecido.
Pensei que agora não ocorreriam mais faltas. Nos conhecíamos, sabíamos dos nossos erros. Não repetiríamos. E, se antes me senti sem chão, agora o afastamento só aconteceria quando o amor acabasse. Ou a paciência. Seria sereno, sem dor, como a morte ao dormir. Mas o medo venceu a esperança. O teu, não o meu.
E as lágrimas teimavam em cair, como ainda o fazem hoje e vão fazer até secar. Por muitas vezes foram contidas, depois do sexo. Há tempos tua ausência se fazia mais presente. E vinha um vazio, uma vontade de chorar ... Mas naquele dia, não havia mais como segurar. O vulcão entrou em erupção. Não conseguia mais carregar sozinha a solidão.
Lá fora, a lua é cheia. Aqui dentro, está tudo vazio. Tá preenchida com um coelho, lembra? De quando deitamos no chão frio admirando-a?
Naquele dia, a certeza de que sempre não é todo dia. Cada minuto, uma lembrança, uma despedida. O peito grande, acolhedor. O dedo que desliza sobre seus cabelinhos... e a solidão que me acompanhou por horas na madrugada sem fim, quando o sono não vinha. A última noite juntos. Mas que não conseguia aproveitar porque a tua respiração, o teu ronco me davam vontade de chorar. Me informavam que tu não estavas ali. E eu não queria te acordar. Queria prolongar uma pouco mais aquele contato.
O teu cheirinho na cama. Teu suor encontrando o meu. Mas era a última vez. O banho para esquecer aquela madrugada, aquele dia interminável que começou com uma ligação.
Quando aquele telefone tocou, meus sonhos foram se desfazendo um a um. A solidão foi preenchendo meu coração. E a certeza de que nunca não é nenhum dia. Não estar nunca é simplesmente abandonar o que é importante. Estar ausente quando a presença era obrigatória, essencial. E tu fizeste isso sempre (não todo dia, mas toda vez que era estritamente necessário).
Uma madrugada interminável, seguida de uma manhã sem fim. Com direito a trilha sonora que dizia o que eu pensava: “Tô tentando ser feliz, tô tentando te fazer feliz”. Desde que o tesão e a saudade foram maiores que os ressentimentos e as ausências do passado, esse era o meu lema. “Por que é que eu não desisto de você?”, me perguntava ao ouvir o Kid Abelha cantar, toda a vez que o peito doía, indicando que um dia a ferida ia arrebentar. “Não se desama dando um mero tchau”. Foi a tua palavra, quando a boca queria dizer adeus. E hoje, “dá saudade de sentir...”.
E o teu corpo me chamava. E era sofrido me desgrudar dele. Alisar teus cabelos, tatear tuas rugas. Cada pedaço de mim que saia de ti me doía. Como num teatro, no embalo de minhas lágrimas, em câmera lenta, fui te deixando. Porque tu já tinhas me deixado (não sou injusta, o vazio no meu peito me apontava para a solidão. De que adianta um corpo do lado se o coração não está grudado? Se ele escorrega, com medo de se entregar?).
Até quando? Até quando a saudade for maior que a felicidade?
Mas a solidão ficou insuportável. E o vulcão transbordou. E levou com as lavas tudo o que vivemos. E o que poderíamos e o que deixamos. Levou consigo todos os dias sem sentido, os vividos intensamente e os realmente importantes. Levou consigo o abandono. Estar só, acompanhada. E então, saíste, como da outra vez, sem uma palavra. Apenas um tchau. Pra que falar se sempre (que não é todo dia) me senti só, abandonada?
Queria mais. Sempre quis.
Não se mede o gostar, tu me dizias. Mas às vezes são precisos gestos, muito mais que presentes e lembranças. É preciso ouvir: Quero estar contigo. Não ficar, no sentido novo e no velho (até que a morte os separe). Inteiro. Compartilhando. E tu não conseguias me dar. E eu, não queria enxergar.
E então, mais uma vez, aquela porta se fechou, sem olhar para trás. Me senti como na música “Atrás da porta”, com vontade de gritar: Não!!! Lembro que essa frase ficou ecoando em minha cabeça. A cena se repetindo. A cena que se repetia. Lentamente me levantei e olhei. Tinha vontade de correr e me agarrar a ti e não deixar nunca mais bater aquela porta. Porque toda a vez que ela se fechou, um pedaço de mim foi com ela. Mas tu já não estavas lá. Talvez nunca estiveste. Não passou de um grande sonho. Um lindo e inesquecível. Não adiantava mais. Talvez sempre vivi sozinha. Talvez nunca nos encontramos. Ficou apenas a saudade. De um tempo que não sei onde está. E a lua lá fora, a confirmar que um dia tudo foi lua cheia. Agora, vazia.

* Inspirado em Osvaldo Montenegro

No avião, a caminho de BH
22 de junho/05

(Ela pensa que é literatura)

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