Um dia na tua vida - Parte I
Queria te espiar, não olhar pela fechadura ou pela janela,
mas estar ao teu lado, acompanhando os teus passos. Queria ser invisível e te
observar... Poderíamos brincar de espiões. Eu acompanharia a tua vida e depois
tu a minha. Sobreviveríamos a elas?
O sol nasceu e eu não ouvi o galo cantar. Acho que ao teu
lado meus ouvidos apenas escutam músicas. O despertador toca e tu acordas
apressado. Pra que, se estou ao teu lado? Abraço-te. Beijo-te. Tento agarrar-me
a ti, mas me desvencilhas. Levanta-te enquanto eu ainda me espreguiço. É tão
bom continuar na cama mais um pouquinho... Ouves o passarinho? Não, já saltaste!
Deixa-me dividir o banho contigo. Estás fazendo a barba. Para que, se eu gosto dela assim, a me arranhar? Deixas eu ensaboar teu peito, lavar
os teus cabelos... Deixas-me sozinha no banho e, quando saio, tu já estás quase
pronto. Falta o nó da gravata. Não, não sei fazê-lo. Não me interesso por homens
engravatados. Por que insiste em usá-las se não precisa? Ficas muito melhor
sem. Como seria se ao invés do terno tu colocasses uma calça jeans e uma
camisa? Ou uma bata? Adoro homens de bata. Branca.
Depois de certa idade não precisamos mais ser tão formais,
nosso conhecimento, nossa história já nos respaldam profissionalmente. Não precisamos
provar nada. Não precisamos de roupas para ser. Somos, sem máscaras.
Desces para fazer teu suco enquanto eu me visto. Quando
chego à cozinha, tu já o tomaste. Para que a pressa se estou ao teu lado?
Observo o jardim pensando em como será o dia. Não precisas mais de um ritmo
acelerado, mas não percebes. Acostumaste-te a ele. Não sabes viver sem a
escravidão do relógio ou sem a muleta do tempo.
Ofereces-me um pouco do suco. Eca! Nossos gostos não
combinam perfeitamente. Gostas de jiló, ora bolas! Ou é quiabo? Não lembro. Só sei que é
herança do lugar onde vivemos. Eu não me adaptei àquela culinária.
Olhas o relógio, apressado, e me fitas, como quem diz:
vamos. Entramos no carro e eu peço para que faças o caminho mais bonito. Mas
qual será? Pela orla é melhor ao fim do dia. Acaricio o teu rosto: ele mudou
tanto em tão pouco tempo. Por quê? Beijo-te.
Vamos então pelo caminho das árvores. Peço-te que não corras
tanto. Para que a pressa se estou ao teu lado? Andas como quem tem apenas
aquele minuto. Mas se ele fosse o último, viverias assim ou irias sorvê-lo com
calma? Acaricio-te a perna. Mas estás concentrado na corrida maluca. Eu observo a vida pela janela.
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