O ex-amor

Paulo Sant'Ana

Não há sensação mais assustadora do que reencontrar-se depois de muitos anos, em qualquer lugar, com alguém que foi o nosso grande e insubstituível amor. 
De repente, num restaurante, num bar, numa festa, na rua, topamos com aquela mulher ou aquele homem que julgávamos seria inseparável das nossas vidas - e que pelos caprichos da existência tornou-se apenas numa vaga lembrança, afastada do nosso caminho, tornada desimportante pelo novo rumo que enveredamos.
Mas está ali presente, ao nosso lado, às vezes até conversando conosoco, aquela pessoa que era a razão de nossa existência. 
Somos então tomados invariavelmente por uma náusea. Algo assim que atinge os que fazem regressão e voltam a vidas passadas. Aquele grande ex-amor afirma que tínhamos outra identidade, embora fôssemos nós mesmos.
Sucedem-se em nossa alma então as mais variadas e contraditórias emoções, desde o arrependimento e o remorso até a vergonha e o desvario.
Imediatamente, assalta-nos a quase certeza de que as outras pessoas que sucederam àquele grande ex-amor em nosso coração e em nossa vida não passaram de invasoras e intrusas, posseiras espoliadoras de algo ou de alguém que não lhes pertencia, tomado à força do legítimo dono.
E um profundo tédio nos domina, uma melancolia de danar a alma, uma dor do ideal perdido, do amor que se finou sem ter-se concluído, um imenso desperdício, um abismo de sonho desfeito, um mal que a gente fez a si próprio sem querer, uma culpa tremenda pela tristeza do que se acabou sendo e o libelo do que se deixou ser. 
A vida tinha que nos poupar do reencontro com o ex-amor. Não há mal que mais nos vergaste que os sonhos frustrados, a lembrança do que tinha de ser e evaporou-se nas sombras, do querido e não conseguido, do palpável e não tocado, do atingível e não resultado. 
E ficamos a contabilizar os nossos danos e a imaginar os danos que causamos àquela pessoa que como um fantasma agora vem nos acusar. Que dor!
A dor do destino que não se traçou, da viagem naufragada contra os rochedos, embora a bússola nos advertisse sem sucesso.
O sentimento de autotraição, covardia, um chute na lucidez, a irrecuperável derrota da energia desaproveitada.
Poupe-nos a vida de nos reencontrarmos com os nossos ex-amores. Nós que tanto driblamos a sua recordação, que por autopiedade fingimos que os esquecemos, tentando cultuar novos valores. 
Mas que diabo, cedo ou tarde verificamos que aquela ferida ainda sangra e, na melhor das hipóteses, se no futuro não for de novo pelos reencontros remexida, ainda assim se tornará numa inocultável e horrenda cicatriz. 
A cicatriz da marca de ferro em brasa no pêlo e couro das cavalgaduras. 

ZH, 16 de maio de 1999




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