A tua figura que desfigura



Tens a fama de bom menino. Pra quem?
A gente sempre se apaixona pelo nosso espelho. E, diante dele, o que eu vejo? A penumbra de uma imagem. O rosto desfigurado.
Os olhos amendoados, de gato, agora são apenas de gato escaldado. Muito escaldado. Em demasia... Não são mais olhos de gato. Os olhos se apagaram. E na imagem do espelho, não existe mais nada. Apenas a sombra do que um dia já foi.
Delineia-se um rosto. De bom menino. Pra quem? Afeito a boas ações...
O cabelo, pouco, quase não se percebe mais no espelho. Um a um foi caindo, junto com tudo o resto que se foi. Em cada fio, uma magia perdida, o encantamento, que se esvaia. No dia-a-dia cada fio era arrancado por um dos dois.
Quando eu olho pro espelho não vejo figura alguma.
Por quem mesmo que eu me apaixonei?A gente se apaixona por si. E tenta colocar no outro um pouquinho da gente. Somos eternos egoístas. Auto-amados.
O amor a si próprio é o limite do amor. O limite da paixão está no amor-próprio.
Quando eu olho pro espelho, eu vejo um rabisco de alguma coisa. Um borrão mal apagado.
A boca pequena sumiu de tanto deixar a frase no vazio. Ela sumiu no ar das palavras não-ditas. Mas, principalmente, se apagou a cada dia, nas feridas, nas palavras faladas para ferir, para machucar.
O que é que tem do outro lado, quando eu olho no espelho? O que é que a gente vê? Ilusões.
Não tem olhos de gato, não tem cabelo.Os fios todos ficaram soltos, se apagaram. Cadê o rosto onde eu toquei?
Chego mais perto do espelho para procurar alguma coisa que identifique. Eu tento tocar na sobrancelha, ela não existe mais. E vou apalpando cada pedacinho daquele rosto que um dia já foi meu. E a mão desliza pelo espelho, mas não tem nada. Ela esfrega, freneticamente, mas não tem nada.
Eu encontro os meus olhos no espelho e não vejo nada. Então, eu me distancio. E vejo a tua figura, desfigurada.
Tens fama de bom moço, pra quem?
Pra mim fica só um fantasma, que insiste em aparecer no meu espelho, essa lembrança do passado. És uma criança mal criada.


Sampa
Maio de 2008

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