Aquela ligação


"Oi, liguei para saber como tu estás". Durante meses esta frase martelou os seus ouvidos. Toda semana ele telefonava com a mesma desculpa. Para uma conversa que queria muito mais do que isso e que durava muito mais que o simples "saber" do outro. Por educação ou talvez por consideração aos velhos tempos, pelo grande amor que um dia ela sentiu por ele, ouvia. Mas o papo não evoluía. E ela cansou.
Durante um bom tempo deixou aquele interurbano tocar, falar sozinho com a secretária eletrônica.
Então, saindo do cinema, ligou o celular, que tocou. Sem ver o número, atendeu. Era ele do outro lado: "Preciso falar contigo", com uma urgência de quem está com problemas. E então, de uma hora para outra ela virou "a última esperança de felicidade", a salvação dele, o reencontro com o amor. Ela, que um dia quis salvar o mundo se via com a "missão" de salvar alguém. Mas era tarde. Não que ele não tivesse salvação. Mas porque ela não tinha mais competência para salvá-lo. "Incompatibilidade de gênios".
Tudo o que ela admirava em um homem ele tinha: inteligência, senso de justiça e de política. Olhos grandes, boca pequena, algumas entradas. Um papo sério. Ele era perfeito. O tão sonhado pai dos filhos dela. Só que há 10 anos...
Havia um grande hiato entre aquela ligação e o que ela sentia. O tempo passou e ele não tinha se dado conta. Naquela hora, lembrou que um dia antes ele já tentou uma volta e ela, sozinha, pensou que fosse possível. Afinal, ele tinha sido "o grande amor da vida dela". Naquele instante lembrou que há um ano já tinha constatado que não era possível. Não só porque agora ela amava outro, mas porque havia um enorme abismo entre eles: físico, biológico, cultural, social e muito mais que isso: de vida.
Um dia aquelas duas vidas traçaram caminhos semelhantes. Mas agora eram quase opostas.
O ideal de homem dela mudara: alto, peito forte, mão e bocas grandes. Com um sorriso nos lábios. Com bom humor, ligado na tomada, sensível, amante das artes e bom cozinheiro. Porque tempero era tudo... Definitivamente, eles já não tinham nada a ver.
"Oi, liguei para saber como tu estás". Ela seguiu ouvindo, resignada, na certeza de que a extrema solidão na coração do Brasil deixasse ela assim saudosista ou de que ele era míope e só hoje tinha percebido o amor que ela ofereceu sem pedir em troca, mas que ele não soube reconhecer na época.
"Tudo bem, mal não faz", ela pensou. E seguiu recebendo aquelas ligações. Três vezes por semana. Uma vez por semana. A cada 10 dias. Quinzenalmente. A cada 20 dias. Uma vez por mês. A cada 45 dias. A cada dois meses ... Até que um dia elas cessaram. Ele estava curado.
Tudo o que ela queria agora era aquela ligação. Não necessariamente dele...
"A gente não tem tudo o que quer do jeito que quer", disse ele um dia. Verdade.
E aquele aparelho nunca mais tocou. Mas ela segue esperando que um dia alguém a chame, tocando não só o telefone, mas também seu coração. E hoje, o que ela mais queria era ouvir aquele som mais uma vez.

Sampa
Agosto/06

Comentários

Anônimo disse…
Neila,
adorei o texto até chegar na parte do "Código das 20 pra meia-noite". Que dialeto tibetano é esse no final? A essa hora o tico e o teco não processam uma coisa dessas.
Bjks
Neila Baldi disse…
Roger, deu algum pau. Republiquei o texto.
Anônimo disse…
encontros...reencontros........e DESENCONTROS.......

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