O luto


 Cada pessoa tem o seu jeito de viver um luto. E cada luto é diferente. Mas, dizem, algumas fases se repetem.

Sempre tive medo do dia em que voltaria do hospital sem o Papi. Mas não houve hospital. Sempre imaginei que, como espírita, todo o conhecimento acumulado me ajudaria a passar por este momento com serenidade. Mas entre o consciente e o inconsciente há um abismo.

Os primeiros dias foram de incredulidade: como assim? Chorava sem parar e tinha raiva do universo: ainda tínhamos tanto pra vivermos juntos, como partir sem se despedir? Nas primeiras horas, além do choro, tinha náuseas – que persistiram por alguns dias. Estava digerindo (ou tentando). Também tive insônia. E a homeopata veio me socorrer, com fórmulas que atacassem os sintomas e, ao mesmo tempo, me fortalecessem. Precisamos ser fortes, dizem. Sempre fui forte. Queria ser fraca...

Para quem, como eu, além de espírita, acredita no soma, tudo estava interligado... o ‘corpo físico’ tentando se expressar de diversas formas.

Nos primeiros dias, sentia-me anestesiada: chorava muito, o tempo todo, sentia náuseas, quase não dormia e a cervical ficou tensa. A partir dali teríamos várias coisas a resolver e a primeira delas foi doar as roupas, sapatos, cobertas e remédios do Papi para o asilo Padre Cacique. Os livros ainda não foram nem separados pra doação.

Estava em férias e, uma semana depois, no meio do mato. Precisava descansar. Nos últimos cinco anos, quase não tive férias. As duas primeiras foram ocupadas com uma pós-graduação. E as últimas, tiradas parceladas por causa da coordenação do curso e da pandemia. Mas quem descansa em luto? Como diz Peixoto, em Morreste-me: Deixaste-te ficar em tudo... Uma bosta de vaca no caminho, no meio do mato, lembrava os tempos de criança, na chácara. A água da cachoeira, a ida pra Rolante. E assim ia, caminhando, lembrando e chorando em silêncio. O choro só caiu compulsivo, de novo, ao ver o vídeo que a minha irmã fez, com fotos dele.

Amigos e amigas que já perderam pai ou mãe, me davam seus testemunhos. Alguns, de que o trabalho cura. Na semana seguinte, as férias já tinham terminado e eu precisava planejar o semestre. Tudo o que eu fizesse em movimento, andava. Parar em frente ao computador era cair no choro.  A rotina ia voltando, o choro seguia diário, quase o dia todo, compulsivo nos horários em que eu falava com o Papi. Encolhia-me na cama, como uma criança. Era assim que eu e sentia: uma criança abandonada.

Tentava lembrar a última vez que eu o vi, a última vez que o abracei, a última conversa ao telefone, a última mensagem... a última. Nunca sabemos, quando estamos vivendo, que é a última. O sentimento de culpa, de não ter desconfiado, de não o ter socorrido, me perseguia. Um dia, uma amiga me lembrou do que eu a ensinei sobre o espiritismo. E passei a refletir sobre a culpa, a saudade, a perda. 

Aos poucos, neste primeiro mês, os enjoos foram passando. Assim como a insônia. Mas não o incômodo na cervical, que aumentou.  No osteopata, no mês seguinte, entendi parcialmente, ao descrever a cena de ver o meu pai caído, morto, e de sentir o mundo desabar sobre mim.

Tinha a necessidade, no primeiro mês, de seguir minha rotina com o Papi. Eu falava com ele quase todos os dias, assim como ia na casa dele uma vez por semana, no máximo, a cada 10 dias. Segui fazendo isso, com pretextos diversos. Até o dia, já no segundo mês, em que saí de lá com uma enxaqueca enorme – talvez já fosse a pressão alta desregulada – e compreendi que precisava me dar um tempo para voltar a frequentar aquela casa em que está faltando ele... Falava com ele em orações e, no segundo mês, passei a escrever cartas.

Tudo era motivo pra lembrar do Papi. Lembrar do dia em que o encontrei caído. Da ida até a sua casa, do caminho: na ida e na volta. Na missa de um mês foi a primeira vez que o vi em outro idoso. Espírita que sou, estava ali só porque era o Papi. Mas aquele senhor, do passo curto, me descortinou. E desejei nunca mais precisar ir numa missa....

No segundo mês as aulas tinham voltado e, no primeiro dia, pedi desculpas a cada turma por não terem este semestre, a Neila de antes. Não sabia quando voltaria a ser o que era. Não sei se um dia voltarei.

Mas o desânimo era geral e eu só tinha vontade de uma coisa: mexer nas coisas do Papi, selecionar fotos, ler as histórias dele que eu queria organizar, etc. Quando fazia aula prática, mesmo distraída, as coisas andavam. Sim, distraída, pois se antes o cansaço me deixava com a memória abalada, agora, o luto, não me permitia ter outro foco que não fosse meu pai.  Era muito difícil prestar atenção a qualquer coisa: um movimento, uma fala. Por vezes, no meio de tudo, ele vinha à memória.

Mas o mais difícil era ter que criar. Klauss Vianna dizia que a criatividade exige espaço. Faltava-me espaço. Havia dias em que me sentia uma fraude como professora: que aula ruim. Para estar mais perto da arte, criei uma estratégia de início de aula: levar literatura sobre o momento que, para mim, teria relação com a aula. No primeiro encontro de Pedagogias da Dança I, que falei de autobiografia, li uma frase do Gorz que fala em reconstruir a história do nosso amor. Era o que eu tinha vontade de fazer em relação ao Papi, ao querer mexer em suas coisas.

Parte do mês eu dediquei a organizar as fotos do Papi no computador, por ano e temática, para depois comparar com o que tem no Facebook, baixar o que não está salvo, desativar a conta, fazer um álbum compartilhado. Já não chorava o dia todo, mas todos os dias. Em algum momento, dando aula, lendo, ouvindo músicas. E no trânsito. Toda vez que saía pra rua, caí no choro dentro do carro. 

Neste segundo mês, as tensões no mundo externo aumentaram e os resultados dos meus exames também não foram bons: a pressão alta, antes controlada, tinha voltado. Mudança na medicação. A homeopata também mudou as fórmulas. A tensão no pescoço se espalhou e havia dias em que me sentia como um graveto, frágil, que se quebraria a qualquer momento. Voltaram os formigamentos no rosto e nos braços, presentes na primeira semana. Este tipo de formigamento pode ser tanto por pressão em alguma enervação quanto por ansiedade. Fiz sessões de osteopatia e comecei o tratamento com quiropraxia.

Todo o dia sentir algum sintoma de alguma coisa começou a me incomodar. Ficava pensando: até quando vou ficar assim? Quanto tempo dura um luto?

Os diversos sintomas iam e viam e eis que no meio do terceiro mês tudo piorou. Voltei a chorar todos os dias e comecei a ter mal-estar direto. Alguma coisa estava errada: a pressão foi às alturas. O luto só potencializou o que já existia: um cansaço imenso e a necessidade de parar. Foram cinco anos quase sem férias e quando a pandemia começou, ao invés de me dar o tempo necessário que o universo pedia, produzi loucamente: um livro, um ebook e muitos artigos. No segundo ano de pandemia o cansaço começou a dar sinais e as crises de falta de criatividade surgiram, fui deixando alguns compromissos, entre eles, a coordenação do curso. Agora, tinha um luto, um cansaço, e a pressão externa pedindo à volta à presencialidade, além da angústia de um processo que tento resolver há três anos. Resultado: deu pane. A mudança na medicação pra pressão, feita em abril, não surtiu efeito. A homeopata mudou as fórmulas. E eu percebi que precisava adicionar mais profissionais à minha busca pelo bem-estar: acupunturista, psicanalista e psiquiatra. No meio do caminho, uma ida ao hospital, e a mudança, de novo, da medicação para a pressão alta, junto com uma licença médica.

Pausa. É preciso parar. É a vida ensinando a necessidade da pausa. Disse-me o cardiologista que eu estou apenas na metade do luto. E que a pressão está relacionada com as emoções. 

Nunca ouvi tanta música relaxante, nunca tomei tanto remédio (homeopático ou alopático) com a mesma finalidade: relaxar. Difícil ficar sem fazer nada quando eu me acostumei a ritmos intensos. 

Na saída pra licença, pedi desculpas aos alunos e alunas por não conseguir seguir e precisar me afastar. Recebi um carinho imenso. São estes pequenos gestos que dão ânimo na profissão. A formação docente é mais que técnicas e métodos. 

Ao escrever este texto, lembrei de uma canção que muito cantarolei no Doutorado: deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar... (rir pra não chorar).


A última postagem no blog havia sido sobre o medo de perder o Papi. 

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