Como se chega a ser o que se é*
Eu não me permitia sujar os pés. A
areia que entrava no sapato, eu tirava. Não brincava na terra para não me
sujar. Não andava de pés no chão. Estava sempre impecavelmente limpa, cheirosa
e arrumada. Mas com a franja invariavelmente torta. Eu não deixava o cabeleireiro
cortar...
Eu estava sempre de vestidos. E
caminhava segurando-os, como uma princesa. Incorpórea.
Eu subia na mesa de centro da sala
(de mármore!) e saltava. Sentia-me voando. Subia em minhas Melissas como se
estivesse com uma sapatilha de ponta. Queria ser borboleta. Incorpórea.
Adorava os sarandeios e minuetos
das danças gaúchas. E gostava, principalmente, do vestido de prenda, com a saia
de armação. Segurava-os nas pontas, armado. Sentia-me aristocrata.
Eu fazia poses na frente do
espelho. Caras e bocas. Eu não caminhava, eu pisava em ovos. Eu não pulava
poças, eu saltava como um grand jeté. Eu não abraçava, eu fazia uma reverence.
Eu não esperava, eu ficava no pas-de-bourrè.
Eu não segurava o microfone, eu o reverenciava.
Eu era Odette. Mas precisava ser Odile. Eu procurava
incessantemente por ela: no teatro, na dança contemporânea. Até o dia em que eu
me permiti sujar os pés.
* Parafraseando Nietzsche em Ecce Homo.
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