Obrigada

Obrigada, foi o que a mãe da Ana me falou, na despedida.
Obrigada eu, eu respondi. E dei-lhe mais um daqueles abraços profundos e doidos. Não falei mais nada, só pensei: obrigada por teres me dado tua filha. Fiquei engasgada com a frase não dita.
Obrigada, tia, pela amiga que um dia tu me deste. Quantos sorrisos juntas, e algumas lágrimas.
Não consigo lembrar de tudo. Lembro-me de algumas coisas - e sempre momentos bons. Lembro-me do dia em que ela chegou ao colégio, meiga e com um ar tímido... Eu a acolhi, como sempre fiz com todos os "estrangeiros" dos portos por onde percorri. A partir daquele dia, sentava lá na frente, comigo e com a Agápita.
Lembro-me quando ela chegou no colégio, triste, e me abraçou chorando. Tinha um nódulo no seio, teria de fazer uma cirurgia. Não era nada sério, mas ela tinha medo. Ontem, a tia lembrou disso, de quando fui visitá-la. E eu lembrei do casamento, tão lindo, numa cerimônia judaica. Eu até brinquei que também queria casar com um judeu... Lembro-me de quando contou do romance e eu, puritana, repreendi. Ela namorava outro e, de repente, apaixonou-se por aquele. Mas, mesmo assim, eu apoiei. Achava uma loucura. Mas fiquei do seu lado.
Lembro de minha festa de aniversário, em que, no fim, ela pegou um guardanapo e escreveu um monte de bobagens, pedindo que as outras também o fizessem. Eu o guardei por anos e o procurei desesperadamente no dia em que soube que nunca mais veria aquele sorriso.
Lembro de ver sua irmã dançar - tínhamos algo em comum, eu e a Debora (e da inveja de saber que ela teve aulas com o Seu Rolla). De quando sua irmã também veio para o colégio, querendo ser professora. As duas viraram educadoras.
Lembro-me de tanta coisa - outras, não. Lembro-me de quando fomos ao teatro e saímos cantando a música brega da peça, rindo, rindo muito. Lembro-me muito do sorriso dela. Parecia que nunca tinha tempo ruim.
Lembro-me também da última vez que a vi, na casa da Neca. Com uma filha e outra à espera. Parecia feliz e eu não sei se, ali, por estarmos há tanto tempo separadas - já que eu fui embora - ela não quise contar algo ruim ou se o casamento ainda era uma felicidade só. Nunca soube do sofrimento e sinto não ter podido ajudá-la.
Então, um dia, morrendo de saudade de minha juventude com ela e com as outras, perguntei pela Ana. Você não soube? Foi a resposta que ouvi. E o meu coração parou, ficou congelado na garganta, com medo da continuação daquela frase. Eu não queria ouvir a resposta porque sabia que ela ia me doer. Mais uma vez eu perdia alguém sem despedidas. Acho que não estou preparada para perdas, então a providência divina faz o favor de me avisar depois...
Era só uma mãe tentando salvar a filha. E juntas se foram, assim como a irmã dela, numa avenida da capital. Sem despedida. Nem pra mim, que estava longe, nem para os pais.
Por dias chorei de longe e por dias pensei nos pais. Queria muito dar aquele abraço neles. Eu imagino a dor deles, de perder duas filhas e uma neta. Mas sei que não consigo dimensionar esta dor. Se dói pra mim, sei que pra eles é muito, mas muito maior.
Eu ficava pensando se tu sabias, disse-me a tia, quando me viu ao chegar na igreja e me abraçou e, juntas, choramos. Eu não sabia. Mas saiu em todos os jornais, ela respondeu. Eu não moro mais aqui, estou em Brasília. Só soube quando eu perguntei dela, querendo revê-la, disse. E nos abraçamos e choramos, muito.
É triste olhar para aqueles dois pais. Ele, como que anestesiado. O olhar está vago. Ela, o retrato da dor, com os olhos fundos e o pranto a escorrer.  O tempo passa e eu sei que a dor deles nunca vai passar.
Eu queria muito dar aquele abraço naqueles pais. E, na hora da despedida, quando eu já estava saindo, ela perguntou se eu fui mãe. Eu respondi que não e fiz um carinho em seu rosto. Talvez eu nunca sinta o que ela sentiu.
Olhei para a santa da igreja e saí. Infelizmente, é linda Nossa Senhora das Dores.




Comentários

Germana Accioly disse…
Seu texto, me perdoe dizer, é um pouco meu. Irmãs pelas dores. Não cabe aqui descrever nossas coincidências, mas vale dizer que você traduziu o pesar do tempo que passa e não leva as dores.

lindo texto. obrigada.

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