Na estrada




O movimento era lento, não como nos supermercados, em que chega a ser frenético, num ritmo encadeado. No fim, era quase automático. Mas nem sempre foi assim...

No início, ia tirando as coisas uma a uma, olhando-as. Havia histórias em cada uma delas. Lembranças. Mirava-as e pensava onde colocar. No espaço, muitas caixas a serem preenchidas. “Esta pra cá, essa pra lá”, e separava-as. Era a hora da escolha, daquelas que ocorrem de vez em quando. A sua havia chegado.  

Uma a uma cada caixa levava um pouco de si. Nas roupas, sapatos, bijuterias, nos utensílios domésticos, nas louças, toalhas, bibelôs, em todos os objetos a serem colocados dentro delas havia a memória do que tinha vivido. Sozinha ou a dois.

Os objetos eram meticulosamente encaixotados, como documentos secretos que um dia vão ser resgatados. Separados, compartimentados. Cada coisa no seu devido lugar. Como a vida: isso é pessoal, aquilo profissional. Isto é diversão, aquilo obrigação.  As coisas encaixavam-se, enquanto a vida se desencaixava...

Algumas peças eram cheiradas e, com o seu perfume, traziam lembranças de outras vidas. Daqueles dias em que esteve sozinha. Dos dias acompanhada. De outros, em que a união era perfeita. Anos de histórias contidos neles. Outras peças eram olhadas com desdém ou já não lhe serviam. Para essas, uma caixa perfeita: a do lixo. Por vezes, alguns admirados iam para outra caixa: da doação. Tanta coisa recebida, que precisa ser recompensada. Dar é dar, diz a música argentina.

Por vezes as lágrimas escorriam, sobretudo no momento em que as caixas eram fechadas ou empilhadas. A vida se transformava em um nada. Apenas em quadrados de papelão. Tudo caberia em um caixotinho... tudo tão pequenino.

Em outros momentos, não era ela quem empacotava. Apenas observava e pensava: Como assim? Isso não é lixo! Ou: tão rápido, sem cuidado?

Cuidado foi o que faltou. Talvez por isso tudo virasse apenas um empacotamento frenético, no final... Como quem tem pressa de se livrar de algo. Automático. Enrola no jornal, encaixa, fecha. Assim como a vida a dois, nos últimos tempos. Em caixas separadas, compartimentadas, sem encaixe.

Não eram só lembranças que se encaixotavam. Um a um os sonhos foram colocados nas mais diversas caixas. Sonhos individuais, sonhos a dois. Compartimentados. Aqueles que ainda podem ser sonhados, ficariam para depois. Mas isso não era claro no momento. Pressentia-se apenas que eram abandonados. E, talvez por isso, doesse fechar cada uma daquelas caixas. Eram sonhos deixados para trás. Dava-se um fim.   

O ritmo frenético agora contrastava com o inicial. Tinha hora para terminar. Neste momento, uma a uma cada caixa era levada para o carro. Empilhavam-se. Um monte delas carregava o carro. Toda uma vida em um cubículo. E mais nada.

Cheio, lotado de caixas, o carro saiu, então, pela estrada. Carregando sonhos... agora, enfim, sós. Sonhos a serem vividos aos poucos ou simplesmente abandonados. Seguiram, assim, os seus caminhos. Em estradas diferentes.

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