Ela que amava a água doce se apaixonou pelo mar


Desde criança a água para ela foi um mistério (e um fascínio). Águas limpas e calmas. Turvas e revoltas. A água a atraia e a repelava. Queria a proximidade, mas tinha medo. Do domínio da água, do descontrole.
As águas estavam próximas a ela. Perto de casa podia ver o rio (aquele que não é rio) e o admirava. Sentia-se como que dona dele. Sempre que o via, gritava de felicidade. Aquela água turva, mas calma, a fascinava.
Morava em uma cidade de águas. E toda vez que se mudava, buscava por elas. Onde quer que estivesse, queria a água a seus pés. Turva ou cristalina, não importava, mas calma – como que a contrapor o turbilhão que tinha dentro de si. E doce. Como ela. Como só alguns podiam perceber.
Águas calmas e doces. Onde quer que estivesse, queria-as por perto. Até o dia em que conheceu as águas gélidas das cachoeiras. Revoltas, intensas, frias. Mas doces. Então ela se encantou ...
A água a acalmava. Era só colocar os pés na água que se sentia completa, energizada. A água lhe trazia paz. E a sua vida se fazia repleta de água. As mais diversas. Ás vezes surgiam em turbilhões. Outras, a conta-gotas. Águas que lhe tiravam o folego. Águas que lavavam a alma. Águas que a levavam. Sempre correntes. Nunca paradas. Águas que percorriam os seus caminhos. Que desviavam das pedras. Que formavam ondas, que transitam por todos os lugares e dentro dela. Águas que chegavam. Que levavam. Que passavam por areias grossas. Águas que refletiam o céu. Mas não brilhavam.
Águas em todos os lugares. Doces, sempre doces. Como só ela sabia ser e poucos tinham acesso. Até o dia em que ela conheceu o mar...
O mar era diferente das outras águas. Vinha em ondas: gigantes ou pequenas. Mas ondas. Em movimento. Mesmo quando ele estava aparentemente parado, no fundo borbulhava por dentro.
O mar tinha largos horizontes. E o sol se punha nele, trazendo uma luz alaranjada. Ardente e calma ao mesmo tempo.
O mar acariciava a areia. Lambia-a e deixava nela os seus rastros. O turbilhão do mar a completava. O mar passa por cima, sem olhar para trás. O mar reflete a luz do sol e brilha de forma cintilante com o sal que carrega nele. Mas no fundo tem uma doçura que só ela sabe ver.
O mar tem repuxo. E dá medo. O mar a atraía, assim como a água doce a fascinava.
Ela, que amava a água doce, se apaixonou pelo mar. Mas ele ficava distante. Às vezes quase imperceptível. Outras, abissais. Ele se colocava como soberano, imponente. E se fazia necessário sem o ser. Porque sem água nem ela, nem ninguém viveria. Mas, e sem mar?
Então, ela passou a buscar pelo mar. A percorrer seus caminhos. A seguir seus rastros. Juntar as suas conchas, porque onde ele estava havia uma beleza que não existiam palavras para exprimi-la.
Ela, que amava a água doce, estava apaixonada pelo mar! E o queria para matar a sua sede. E o queria para surfar em suas ondas. E o queria para ampliar seus horizontes. E o queria para passar por cima dos obstáculos. E o queria...
O mar a fascinava e a atraía. Ela se apaixonou pelo mar e o admirava. Olhava para ele como quem vê infinitas possibilidades. Porque com ele tudo era diferente.
Mas o mar, aquele por quem ela se apaixonou, tem águas salgadas. A mulher da água doce se apaixonou pelo homem salgado.
O mar é salgado. Como as lágrimas que correm do seu rosto, longe do mar.
Ela, que amava a água doce, se apaixonou pelo mar. Mas ele é salgado...

(Ela pensa que é literatura)
Sampa, julho

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