O coquetel
Como se fosse hoje, aquele dia ainda é bastante nítido. Seu
rosto está mais magro, seus cabelos têm alguns fios brancos, as rugas aparecem
aqui e acolá. O dele parece muito mais diferente. Será que ela que o enxerga
assim ou ele mudou mesmo? O rosto também está bem mais magro, com muitas rugas,
os cabelos escassearam e embranqueceram. Faz quanto tempo que se viram pela
primeira vez?
Aquela parecia um dia qualquer em sua rotina. Apenas mais
uma terça-feira de setembro... O coquetel da noite era mais uma atividade
daquela época do ano, que se tornava corriqueira. Mas não foi bem isso...
Como se fosse hoje, a lembrança do dia não só é nítida, como
alguns detalhes afloram: a calça preta, a blusa dourada, o casaco preto com
botões dourados. Mas como ela gostava de dourado! Se na aparência parece que
ela não mudou, no gosto, sim. O cabelo estava mais curto que hoje. O perfume
era amadeirado. E ele? Os olhos embaçam, a nitidez se perde... vestia calça
jeans e uma jaqueta?
Não o viu a noite toda, até ir servir o coquetel. Onde
estaria que seus olhos não antes se cruzaram?
Conversava com uma amiga, enquanto se servia. Com a concha
na mão, colocando a bebida na taça, sentiu o olhar dele penetrar as suas
costas. Sentiu-se observada. Olhou de canto de olho, enquanto terminava de se
servir... Foi ao encontro de seus olhos. Sim, não era uma simples terça-feira
de setembro. Não era qualquer noite. Era a noite do encontro dos desencontros.
Caminhou alguns passos, deixando a amiga se servir e voltou
para o canto, onde a mesa do coquetel se iniciava. Ali ficaram as duas
conversando. De canto de olho, via que ele a observava. Mas quem era ele? Até
hoje não sabe, verdadeiramente, quem é. Desfigurou-se com o tempo... Foi uma
imagem idealizada e não concretizada?
Até que ele chegou à roda de conversa. Falou com seu sotaque
indefectível. Parece que hoje o sotaque não é tão forte... Ou foi o ouvido dela
que se acostumou? Falou de política. Parece que sempre foi esse o assunto. Mas
se foi a política que os ligou, por que não falar dela?
Falou, falou, falou... talvez hoje ela pudesse reproduzir
boa parte daquele diálogo. Assim como aquela noite fria de setembro, a fala
dele também é presente. E como não ser, se exatamente agora, 20 anos depois,
tanta coisa se repete? Parece que a vida tem dessas coisas, de ciclos que vão e
vem.
De todas as lembranças daquela noite, a que ficou mais
presente, foi aquele olhar que lhe queimava a alma. Os olhos do encontro. O
encontro para muitos desencontros.
Nunca mais estiveram juntos em outro coquetel. Nunca mais
tanta coisa aconteceu.
Hoje, a lembrança mais forte é a dos desencontros. Talvez
por isso, não se lembre mais que gosto tinha aquele coquetel: se doce ou
amargo. Talvez o gosto do que não foi.
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